Teoria da autodeterminação no coaching de saúde e bem-estar

Por João Paulo Pinto

 

A história de Clara

Hoje, quero compartilhar com vocês uma história sobre transformação e autodescoberta. É a história de uma mulher chamada Clara, que decidiu mudar seu estilo de vida após um exame de check-up. Clara era uma profissional dedicada e mãe de dois filhos. Ela vivia uma vida agitada, equilibrando as demandas do trabalho e da família. Sua saúde muitas vezes ficava em segundo plano.

Um dia, Clara foi ao médico e o resultado do seu check-up foi uma grande e desagradável surpresa. No curto espaço de um ano, seus exames, que antes estavam dentro da normalidade, pareciam ter se revoltado: agora apontavam para pré-diabetes, colesterol alto, alteração na tireoide, risco de doenças cardiovasculares e outros problemas. Segundo seu médico, ela precisaria mudar rapidamente seus hábitos, pois eles estavam afetando negativamente sua saúde.

Assustada e motivada pelo medo causado pelo resultado dos exames, Clara decidiu mudar. Ela procurou receitas de comida na internet e resolveu tentar um plano bastante restrito para reverter os achados dos exames. Ela também se inscreveu em uma aula de boxe, pois ouviu falar que era uma ótima maneira de perder peso e controlar o açúcar no sangue. Mesmo sem muita habilidade para o esporte, sabia que precisava fazer esse sacrifício.

Vocês imaginam qual foi o resultado desse plano inicial? É… ela não conseguiu sustentar as mudanças.

Mesmo assim, algo havia mudado dentro dela… ela não se enxergava como alguém que precisava tomar remédios para cuidar da saúde e sabia que deveria existir alguma maneira de adaptar sua rotina com hábitos mais saudáveis. Ela retomou o plano, buscou ajuda de uma nutricionista e juntas fizeram pequenas mudanças na alimentação – mudanças que faziam mais sentido e que ela conseguiria manter por mais tempo. Dessa vez, ela preferiu escolher uma atividade física com a qual se sentisse mais à vontade, e voltou às aulas de dança (que já tinha feito quando era mais jovem), onde encontrou um grupo muito animado. Agora seu plano fluía muito mais facilmente.

Durante os meses seguintes, Clara começou a perceber mudanças. Acordava muito mais disposta, seu nível de energia se mantinha alto ao longo do dia, seu humor estava melhor e até a relação com os filhos tinha melhorado. Tudo isso dizia muito a respeito da profissional e do exemplo de mãe que ela gostaria de ser. Isso foi fundamental ao longo do processo, já que, nos meses seguintes, viu seus planos fugirem dos trilhos mais de uma vez. Aparecia uma semana mais intensa no trabalho ou então a semana de prova das crianças, e ela via sua rotina ameaçada, mas conseguia se reorganizar e voltar à ação após algumas adaptações.

A história de Clara nos ensina que a motivação para a mudança pode começar com um susto, mas a verdadeira transformação acontece quando percebemos que a mudança está alinhada com quem realmente queremos ser. E também que é preciso motivação para persistir na mudança, aprender novos caminhos e refazer os planos para manter o foco no objetivo.

Teoria da Autodeterminação (TAD)

O início desta história acontece diariamente em centenas de consultórios médicos pelo Brasil, mas a segunda parte – aquela em que a pessoa resolve mudar e consegue motivação para iniciar e sustentar a mudança, apesar dos desafios – não é tão comum. Na verdade, o padrão é que entre 50% e 80% das pessoas não sustente a mudança.

Você já se perguntou o que nos impulsiona a agir, a aprender, a crescer e a mudar? Você poderia dizer que é a motivação. Essa força invisível que nos faz acordar de manhã, perseguir nossos sonhos e superar obstáculos.

Mas o que realmente alimenta essa chama interna?

De acordo com a Teoria da Autodeterminação (TAD) de Ryan e Deci, os seres humanos têm uma tendência inerente ao crescimento, desenvolvimento e autorrealização. Isso é frequentemente referido como a “tendência ao autodesenvolvimento” e significa que somos naturalmente impulsionados a explorar nosso ambiente, aprender novas habilidades e buscar maneiras de melhorar a nós mesmos.

Porém, para que essa tendência realmente aconteça, é necessária a satisfação de três necessidades psicológicas básicas: autonomia, competência, relações sociais. Entenda cada uma a seguir.

🧭 Autonomia

Refere-se à necessidade de sentir que estamos no controle de nossas próprias ações e que elas são autodirigidas. É fundamental para o autodesenvolvimento, pois permite que os indivíduos façam escolhas alinhadas com seus valores e interesses pessoais, levando a um maior senso de propósito e direção na vida. Na história de Clara, isso aconteceu quando ela buscou ajuda de uma nutricionista e pôde escolher um caminho que fazia mais sentido, oferecendo possibilidades de escolha e adaptação para seu dia a dia.

Outro exemplo seria um estudante que escolhe seu próprio projeto de pesquisa, atendendo à sua necessidade de autonomia. No entanto, se o mesmo estudante fosse forçado a trabalhar em um projeto designado pelo professor ou tivesse suas tarefas controladas de forma muito rígida, sua necessidade de autonomia poderia não ser atendida. Na área da saúde, isso acontece quando a pessoa é forçada a seguir uma rotina alimentar ou um esquema de exercício muito rígido, onde não existe espaço para adaptações ou preferências pessoais. Por outro lado, quando a pessoa sente ter autonomia sobre as escolhas relacionadas ao seu autocuidado, há uma tendência a um maior engajamento, persistência na ação e sensação de realização.

Quando nossa necessidade de autonomia é satisfeita, somos mais propensos a tomar iniciativa e a buscar caminhos para o crescimento pessoal.

💪 Competência

É a necessidade de sentir que somos capazes e eficazes em iniciar, conduzir e sustentar um determinado plano ou ação. Isso pode levar a um aumento da autoestima e da confiança. Na história de Clara, isso aconteceu quando ela escolheu uma atividade que se sentia capaz de realizar. Outro exemplo seria uma pessoa que está tentando melhorar sua alimentação. Ela começa a pesquisar sobre nutrição, aprende a ler rótulos de alimentos e começa a cozinhar suas próprias refeições. Com o tempo, ela se torna mais competente em fazer escolhas alimentares saudáveis, mesmo quando surgem situações mais desafiadoras, como uma viagem de férias ou eventos sociais. Ela sabe quais alimentos são bons para ela e quais deve evitar. Ela se sente confiante em sua capacidade de manter uma dieta saudável.

🤝 Relações sociais

São a necessidade de se sentir conectado aos outros, de poder se expressar de forma autêntica (sem a necessidade de fingir algo para sentir-se pertencente), tendo apoio do grupo para enfrentar situações desafiadoras. Clara encontrou esse suporte no grupo de dança. Esse apoio também pode ser oferecido por um profissional de saúde que acolhe as dificuldades e enxerga os “escorregões” como oportunidades de aprendizado ou momentos de prestar atenção a possíveis necessidades não atendidas.

Portanto, de acordo com a TAD, o autodesenvolvimento e o crescimento pessoal são mais eficazes quando somos capazes de satisfazer nossas necessidades psicológicas básicas e quando estamos intrinsecamente motivados. Isso destaca a importância de criar relações no campo da saúde que apoiem a autonomia, a competência e as relações sociais.

Graus de Motivação

A TAD descreve diferentes graus de motivação, desde a extrínseca até a intrínseca:

🎯 Motivação extrínseca: é quando somos motivados por recompensas externas ou punições. Por exemplo, um funcionário que trabalha horas extras apenas para obter um bônus está mostrando motivação extrínseca. No caso de Clara, o primeiro impulso para mudança ocorreu de forma extrínseca, com o medo de adoecer e a necessidade de reverter o resultado dos exames.

🪞 Motivação introjetada: é quando internalizamos as expectativas dos outros, mas não as aceitamos totalmente como nossas. Um exemplo disso seria um estudante que estuda duro para uma prova porque seus pais esperam que ele tire boas notas.

🌟 Motivação identificada: é quando reconhecemos e aceitamos o valor pessoal de uma ação. No caso de Clara, quando ela acordava mais disposta e sentia seu nível de energia alto ao longo do dia, ela estava ativando sua motivação identificada.

🌱 Motivação internalizada: é quando integramos uma ação ou valor em nosso senso de EU. Por exemplo, um voluntário que ajuda em um abrigo para pessoas sem-teto porque acredita na importância de ajudar os outros está mostrando motivação integrada. No caso de Clara, a sensação de estar se tornando uma melhor profissional e um melhor exemplo como mãe estava muito alinhada aos valores dela como pessoa.

🎶 Motivação intrínseca: é quando somos motivados pela alegria e satisfação inerentes à atividade em si. Por exemplo, um músico que toca um instrumento por puro prazer e satisfação está mostrando motivação intrínseca. Ou, no caso de Clara, a sensação boa que sentia durante as aulas de dança.

A pergunta que fica agora é:

Será possível ajudar uma pessoa a progredir do estágio do medo dos resultados de exames alterados para uma pessoa que tem bons hábitos de saúde porque enxerga alto valor nesses hábitos tanto no seu dia a dia quanto na relação desses hábitos com seus valores pessoais e a imagem que tem de si mesma?

A proposta do coach de saúde é justamente essa. Ajudar a pessoa a encontrar sua motivação para mudança, construir um plano de ação possível e ao mesmo tempo desafiador que ofereça oportunidade de desenvolvimento e crescimento.

O resultado é uma pessoa mais comprometida e responsável pelo seu próprio cuidado, além de mostrar mais autoconfiança e uma sensação ampliada de bem-estar.

 


 

Ryan, R. M., and E. L. Deci. “Self-determination theory and the facilitation of intrinsic motivation, social development, and well-being.” The American psychologist vol. 55,1 (2000): 68-78. doi:10.1037//0003-066x.55.1.68

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